quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

I - Chegada

Estou no quarto onde dormiam os meus primos, por baixo do antigo quarto da minha Avó. A única porta que aqui existe dá directamente para a rua, para um passeio estreito, paralelo à estrada, que separa a habitação do pinhal.

Penso que antigamente este quarto servia de arrecadação para o material que o tio usava no dia-a-dia, tipo: o motor-de-rega, tubos de plástico, ferramentas, etc..
Algures por aqui havia um pequeno alçapão que escondia um furo artesiano, mas não me lembro bem onde está.
As paredes são caiadas e estão como me lembrava, amareladas e cheias de irregularidades que contrastam com o chão negro de ardósia cuja textura áspera é interrompida pelo vidrado nas zonas de maior utilização.
A cama em ferro, tão antiga como desconfortável tem um colchão feito de desperdício de pano, forrado por um tecido azul quadriculado já desbotado pelo tempo.
Do lado oposto, encostada à parede e junto às escadas, continua a arca de madeira. Por cima dela a mesma pilha de roupa: edredons, mantas de retalhos antigas, feitas à mão e outra roupa de cama.

O tempo não avança nesta casa, é como se fosse... mágica.

Talvez por isso goste tanto de aqui estar, mesmo tendo em consideração que as razões não são as melhores.

Adorava passar a férias de Verão aqui, na terrinha, como costumávamos dizer.

Contigo e com o Pai, com a tia, o tio e os primos. Éramos uma família feliz e unida.
Agora os tempos são outros, menos divertidos.

Sei que estás preocupada por ter feito esta viagem sozinha, ainda por cima em setembro, altura de chuva, mas é necessário. A tia está preocupada com o teu estado de saúde e o facto de podermos falar deixa-a mais descansada; além disso confesso que continuo à procura de respostas para o desaparecimento do papá.

És da opinião de que já o devia ter esquecido, afinal já passaram 10 anos. Mas não posso nem vou fazê-lo. Ao contrário do resto da família acredito que o seu desaparecimento não foi premeditado ou intencional e sinto que está a necessitar da nossa ajuda. Enquanto este mistério não for resolvido a minha vida não será normal.

No entanto existe um lado positivo no meio disto :-): estou a aprender a viver sozinha, sem depender de ninguém. Quer dizer,... tenho o meu telemóvel que é uma excelente companhia. Neste momento é tudo o que preciso para me sentir acompanhada. Nele guardo as minhas recordações mais importantes, entre elas a nossa selfie de família.

Ao contemplá-la sinto-me mais próxima de ti e isso torna-se mais evidente aqui, nesta casa onde vivemos muitos momentos de grande felicidade. Através desta imagem consigo comunicar contigo de forma intensa, de uma maneira que nunca conseguiria se estivéssemos juntas na conversa.

Só agora me apercebi da violência dos elementos, de tão distraída que estava.
Sentes a chuva? Tenho a sensação que cada vez mais, o clima reflete o meu estado de espírito... e agora estou deprimida.

Prometo que amanhã estaremos juntas novamente e nessa altura dou-te todas as novidades e dir-te-ei como está a tua irmã.
A viagem foi longa e cansativa e agora preciso de descansar, um beijinho muito grande cheio de saudades.
A última coisa que me lembro antes de adormecer é o som crescente da chuva a bater e que cai de forma excepcional para a época.

11:00 horas.

Acordo toda partida, cheia de dores devido à posição em que dormi. Já não dormia nesta cama há séculos. As molas já estão tão deterioradas pelo tempo e pelo uso que se “afundaram” logo que me deitei, fui literalmente “engolida”.

Estou que nem posso.

A visita à tia vai ser curta e já é tarde. Coragem!

Ao primeiro movimento à procura de um apoio para sair do “buraco”, perco o equilibrio e sou novamente “absorvida”. Parece que estou num insuflável!

Com esforço ponho-me de pé e agarro no telemóvel que deixei em cima da mesa de cabeceira.

Não o devia ser assim, mas a primeira coisa que faço logo que me levanto é verificar o e-mail e as redes sociais. Tenho deixado a higiene diária fica para segundo plano :-(. Estou dependente deste gadget! Mas o que posso fazer?

É com ele que me mantenho em contato com o resto do mundo e por mais que tente, não consigo viver sem ele.

Tenho 3 Mensagens mas nenhuma delas é suficientemente importante para que perca mais de 2 minutos a olhar para o ecrã. Enquanto me visto, penso na tia que certamente se levantou de madrugada para tratar os animais. Por esta altura já passou pelas hortas de onde colheu as hortaliças para o almoço e pelo pomar, de onde recolheu a fruta.

Neste momento deve estar na cozinha a tratar do almoço e não deve tardar a chamar por mim. Este é um ritual que eu adorava fazer com ela sempre que a vinha visitar nas férias grandes.

Animada pela recordação, encho o peito e dirijo-me para as escadas com a intenção de lhe ir dar um beijinho bem carinhoso, antes de passar pela casa de banho que fica no exterior da casa. Quando passo pelo antigo quarto da avó, paro e olho para a pequena porta junto à cama. Num impulso abro-a e fico de frente para as escadas quase tão curtas quanto estreitas, que dão acesso ao sótão.







Sem comentários:

Enviar um comentário

II - O sótão

Não resisto! 
Começo a subi-las com cuidado acompanhada pelo pelo ranger da madeira envelhecida à medida que subo os degraus. Ao chegar...