quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

II - O sótão

Não resisto!


Começo a subi-las com cuidado acompanhada pelo pelo ranger da madeira envelhecida à medida que subo os degraus. Ao chegar a cima, estico-me e observo a estrutura esconsa do telhado. Está como me recordava, talvez um pouco mais curvada pelo tempo.

Olho à volta e avanço!

Por todo o lado se acumulam objetos de todas as formas e feitios. Alguns perderam a sua utilidade com o tempo, outros nunca a tiveram e só ali estão pelo capricho e imaginação fértil de 3 crianças, que em determinada altura elegeram aquele local como o favorito para as suas brincadeiras.
Lembro-me da felicidade estampada na cara da minha mãe quando nos via a correr aos gritos pela cozinha na direcção do sótão, totalmente absorvidos na imaginação da brincadeira.

Éramos uma família feliz!

Os meus tios, os meus primos, a casa, a pocilga,  a capoeira, o trator, a ribeira, o pinhal, era tudo o que não tínhamos na grande cidade. Aqui tudo era permitido. Sentia-mo-nos adultos a viver aventuras adultas.

Com o desaparecimento do pai toda a alegria desapareceu como que absorvida por um buraco negro. Passo a mão pelos olhos na tentativa de impedir uma lágrima mais rebelde.

Olho para para aqueles objetos, todos eles familiares, dispostos de forma aparentemente desorganizada mas com um padrão, o padrão de brincadeiras interrompidas à espera de serem recomeçadas.
Aproximo-me da velha arca, certamente  recheada com os  mesmos objetos da minha infância. Observo-a mas não me atrevo a abri-la pois sinto que se o fizer, uma memória feliz vai desaparecer para sempre.

Junto dela estão as lamparinas de azeite que nunca cheguei a ver em pleno desempenho das suas funções pois tornaram-se desnecessárias após a chegada da electricidade. Mais à frente estão os livros de histórias infantis, os livros escolares e as sebentas todos empilhados, amarelados pelo sol e encarquilhados pela humidade. Ali está a velha ardósia da avó, herdada pelo tio, já meio partida; os montes de sapatos velhos desencontrados ou sozinhos, caixas de cartão recheadas de pequenos objectos isolados; brinquedos que pela sua simplicidade tinham a capacidade de nos estimular a criatividade em brincadeiras épicas; os bancos de madeira que ali foram colocados na esperança que se tornassem úteis mais uma vez; as ferramentas do avô trazidas para aqui durante as brincadeiras e que foram privadas de mais alguns momentos de utilidade, ficando no esquecimento. Estes objectos continuam aqui como me lembrava, agora unidos pelo fino manto cinzento-acastanhado que os faz partilhar o mesmo destino: o esquecimento.

Com cuidado, avanço paço-ante-paço numa irresistível viagem no tempo, tropeçando em memórias felizes que me abandonaram há já muito e das quais já não tinha consciência. Sou bombardeada por inúmeras emoções à medida que observo o cenário.

Continuo a avançar. Desvio-me dos objetos maiores que ostensivamente teimam em ficar no caminho. Apesar do esforço que faço para não sobrecarregar as tábuas sob os meus pés, tenho a sensação de que a delicada superfície que percorro pode ceder a qualquer momento.


"De repente o crepitar das tábuas dá lugar a um estalido forte e grave.
O chão cede por baixo do meu pé direito que se afunda num buraco ao mesmo tempo que a película cinzenta de pó é rompida pela primeira vez em muitos anos. De imediato suspendo a respiração para impedir que as partículas me entrem para a boca ou nariz. Semi-serro os olhos e atordoada fico a olhar para o feixe de luz que entra pela única janela que ali existe e que parece ampliar a quantidade de partículas suspensas que me envolvem num abraço, que me convida a permanecer.

Superada a surpresa e afastando o medo, tento adaptar-me à iluminação mais ténue, ao nível do chão.
Inclino-me para a frente enquanto apoio cuidadosamente as mãos no soalho apodrecido. Com a mão direita começo a contornar as tábuas à volta do tornozelo em busca de uma folga, até encontrar uma tábua mais fragilizada que se esfarela quando a pressiono.

Estou livre e curiosa. Pego no telemóvel que trago no bolso e uso-o como lanterna. Aponto-o para o interior do buraco na tentativa de perceber em que superfície macia e confortável se apoiou o pé. Parece um embrulho cuidadosamente escondido. Agarro o pano que o envolve com a ponta dos dedos e no momento em que puxo o tecido envelhecido este desfaz-se, sem que o objeto que protege se mova.

Rodo o corpo para agarrar melhor o objecto e começo a puxá-lo. Pela forma, textura e pela torção que faz quando puxo, percebo que é um livro. Ao retira-lo, seguro-o com ambas as mãos. Ignoro o manto de pó e sento-me de pernas cruzadas onde o apoio inclinando-me para a luz. Fico a observá-lo. Tem ar de ser bem antigo, um daqueles que se guardam em vitrinas de museus, e pelo aspecto deve estar aqui à muito tempo.

A capa de cabedal parece irremediavelmente danificada pelo tempo e pelos maus tratos. Começo a percorrer a suave textura da pele com a ponta dos dedos que encontram ocasionalmente os baixos relevos que formam os seus delicados e enigmáticos desenhos.

Num ímpeto, como se respondesse a um apelo irresistível, abro a capa que vem com outra folha agarrada. Analiso a página seguinte, amarelada pelo tempo e manchada pela humidade. Ao meio apresenta um texto que aparenta ser o título escrito em caracteres estranhos.

Os meus olhos descem pela página e o que vejo no canto inferior direito faz-me disparar o coração.

“Olá Edite, como estás?” - vejo escrito à mão.

Paraliso por uns momentos pois fico com a sensação que aquelas palavras se materializaram naquele instante. O azul vivo e brilhante da tinta contrastam com o restante texto, debotado. Sinto o cheiro de tinta no ar mas o que me incomoda verdadeiramente é que o conteúdo parece ser dirigido a mim.


Não sei quanto tempo fiquei ali,… estática a tentar perceber o significado daquilo, mas a fraca luz do sótão, o meu cansaço e uma enorme coincidência serão com certeza uma boa justificação  para tudo isto.
O grito da minha tia tira-me do transe
— Edite, o Almoço está na mesa! - grita.
— Vamos comer! - Reforça
— Desço já tia! - Respondo prontamente com um grito
— Dá-me um minuto! Volto a gritar enquanto fecho o livro e me preparo para descer.

Antes de iniciar o meu percurso para a cozinha, sou bombardeada por uma série de questões: o que faz ali o livro? Quando foi escondido? Com que intenção e por quem? Poderá ter sido o papá? Terá este livro alguma pista que me ajude a encontrá-lo?
Um calafrio percorre-me o corpo e de imediato tomo decisão de o esconder. Não o vou mencionar à tia, pelo menos até ficar mais esclarecida.

Apesar de não me orgulhar do que vou fazer, começo a descer as escadas e à porta do quarto da Avó páro e olho à volta à procura de um local onde o possa deixar. Verifico que o local mais escuro do quarto é debaixo da cama que se encontra imediatamente abaixo da única janela que ali existe.
Ali deverá ficar seguro até decidir vir buscá-lo.

“Por favor, Não desapareças!” Pensei.





I - Chegada

Estou no quarto onde dormiam os meus primos, por baixo do antigo quarto da minha Avó. A única porta que aqui existe dá directamente para a rua, para um passeio estreito, paralelo à estrada, que separa a habitação do pinhal.

Penso que antigamente este quarto servia de arrecadação para o material que o tio usava no dia-a-dia, tipo: o motor-de-rega, tubos de plástico, ferramentas, etc..
Algures por aqui havia um pequeno alçapão que escondia um furo artesiano, mas não me lembro bem onde está.
As paredes são caiadas e estão como me lembrava, amareladas e cheias de irregularidades que contrastam com o chão negro de ardósia cuja textura áspera é interrompida pelo vidrado nas zonas de maior utilização.
A cama em ferro, tão antiga como desconfortável tem um colchão feito de desperdício de pano, forrado por um tecido azul quadriculado já desbotado pelo tempo.
Do lado oposto, encostada à parede e junto às escadas, continua a arca de madeira. Por cima dela a mesma pilha de roupa: edredons, mantas de retalhos antigas, feitas à mão e outra roupa de cama.

O tempo não avança nesta casa, é como se fosse... mágica.

Talvez por isso goste tanto de aqui estar, mesmo tendo em consideração que as razões não são as melhores.

Adorava passar a férias de Verão aqui, na terrinha, como costumávamos dizer.

Contigo e com o Pai, com a tia, o tio e os primos. Éramos uma família feliz e unida.
Agora os tempos são outros, menos divertidos.

Sei que estás preocupada por ter feito esta viagem sozinha, ainda por cima em setembro, altura de chuva, mas é necessário. A tia está preocupada com o teu estado de saúde e o facto de podermos falar deixa-a mais descansada; além disso confesso que continuo à procura de respostas para o desaparecimento do papá.

És da opinião de que já o devia ter esquecido, afinal já passaram 10 anos. Mas não posso nem vou fazê-lo. Ao contrário do resto da família acredito que o seu desaparecimento não foi premeditado ou intencional e sinto que está a necessitar da nossa ajuda. Enquanto este mistério não for resolvido a minha vida não será normal.

No entanto existe um lado positivo no meio disto :-): estou a aprender a viver sozinha, sem depender de ninguém. Quer dizer,... tenho o meu telemóvel que é uma excelente companhia. Neste momento é tudo o que preciso para me sentir acompanhada. Nele guardo as minhas recordações mais importantes, entre elas a nossa selfie de família.

Ao contemplá-la sinto-me mais próxima de ti e isso torna-se mais evidente aqui, nesta casa onde vivemos muitos momentos de grande felicidade. Através desta imagem consigo comunicar contigo de forma intensa, de uma maneira que nunca conseguiria se estivéssemos juntas na conversa.

Só agora me apercebi da violência dos elementos, de tão distraída que estava.
Sentes a chuva? Tenho a sensação que cada vez mais, o clima reflete o meu estado de espírito... e agora estou deprimida.

Prometo que amanhã estaremos juntas novamente e nessa altura dou-te todas as novidades e dir-te-ei como está a tua irmã.
A viagem foi longa e cansativa e agora preciso de descansar, um beijinho muito grande cheio de saudades.
A última coisa que me lembro antes de adormecer é o som crescente da chuva a bater e que cai de forma excepcional para a época.

11:00 horas.

Acordo toda partida, cheia de dores devido à posição em que dormi. Já não dormia nesta cama há séculos. As molas já estão tão deterioradas pelo tempo e pelo uso que se “afundaram” logo que me deitei, fui literalmente “engolida”.

Estou que nem posso.

A visita à tia vai ser curta e já é tarde. Coragem!

Ao primeiro movimento à procura de um apoio para sair do “buraco”, perco o equilibrio e sou novamente “absorvida”. Parece que estou num insuflável!

Com esforço ponho-me de pé e agarro no telemóvel que deixei em cima da mesa de cabeceira.

Não o devia ser assim, mas a primeira coisa que faço logo que me levanto é verificar o e-mail e as redes sociais. Tenho deixado a higiene diária fica para segundo plano :-(. Estou dependente deste gadget! Mas o que posso fazer?

É com ele que me mantenho em contato com o resto do mundo e por mais que tente, não consigo viver sem ele.

Tenho 3 Mensagens mas nenhuma delas é suficientemente importante para que perca mais de 2 minutos a olhar para o ecrã. Enquanto me visto, penso na tia que certamente se levantou de madrugada para tratar os animais. Por esta altura já passou pelas hortas de onde colheu as hortaliças para o almoço e pelo pomar, de onde recolheu a fruta.

Neste momento deve estar na cozinha a tratar do almoço e não deve tardar a chamar por mim. Este é um ritual que eu adorava fazer com ela sempre que a vinha visitar nas férias grandes.

Animada pela recordação, encho o peito e dirijo-me para as escadas com a intenção de lhe ir dar um beijinho bem carinhoso, antes de passar pela casa de banho que fica no exterior da casa. Quando passo pelo antigo quarto da avó, paro e olho para a pequena porta junto à cama. Num impulso abro-a e fico de frente para as escadas quase tão curtas quanto estreitas, que dão acesso ao sótão.







II - O sótão

Não resisto! 
Começo a subi-las com cuidado acompanhada pelo pelo ranger da madeira envelhecida à medida que subo os degraus. Ao chegar...